MADRASTAS E MÃES DO CORAÇÃO

 

Grande parte dos brasileiros, mesmo quando ainda não haviam provas definitivas, apontaram a madrasta como a principal suspeita de ter  assassinado a infeliz menina Isabella. Isto porque no imaginário popular  madrasta em vez de significar simplesmente “a mulher que desempenha o papel de mãe em relação aos filhos de seu marido de um relacionamento anterior”, para a maioria das pessoas, madrasta é sinônimo de “mulher má, ingrata, pouco carinhosa,  incapaz de sentimentos amigáveis e afetuosos”, segundo definem os dicionários Aurélio e Houaiss.

Desde criança fomos contaminados pela  figura horrorosa da madrasta da Gata Borralheira, que explorava cruelmente sua linda enteada Cinderela, privilegiando suas maldosas filhas biológicas. Esta demonização literária da madrasta, universalizada em 1950 pelo célebre  filme de Walt Disney, remonta a uma lenda da China, de  quase mil anos antes de Cristo, popularizada no Ocidente num conto infantil de Charles Perrault (1697).

Esta introdução  tem uma finalidade: iniciar uma campanha nacional para acabar na nossa língua e imaginário popular,  a idéia de que a segunda mãe equivale a “mulher má, ingrata, pouco carinhosa,  incapaz de sentimentos amigáveis e afetuosos”. Proponho que doravamente passemos a restringir o uso do termo “madrasta” somente àqueles casos extremos, em que, de fato, a segunda ou enésima mulher do pai se revele maldosa.  Tais madrastas devem ser desmascaradas e denunciadas, para que passem  a tratar seus enteados com respeito, justiça e aprendam a ser carinhosas com os filhos  e filhas de seu companheiro. Madrastas cruéis, que violem o Estatuto da Criança e Adolescente, devem ser julgadas, punidas e até encarceradas, conforme determinar a Lei. Porém, as “madrastas” gentis, carinhosas, que tudo fazem para ser “mães substitutas”, a estas – e felizmente são maioria e mais numerosas! – devem os enteados passar a chamá-las “minha segunda mãe”, ou, usando o baianês,  porque não, “minha segunda mãínha”.

Quantas dedicadas e  carinhosas segundas mães não se sentem humilhadas e injustiçadas com o cruel título de madrasta!

Vamos acabar com este absurdo de dizer “mãe só tem uma”. Mentira! Temos tantas mães quantas nos tratem com amor maternal!  Se respeitáveis etno-historiadores, como Elisabeth Badinter, provaram com sólidas pesquisas, que o próprio amor maternal entre os humanos não é instintivo, mas uma construção cultural, assim sendo, porque a nova companheira de meu pai não poderia desenvolver sentimentos amorosos tão ou até mais profundos, do que minha genitora?

Não há filhos de leite e filhos de santo, que amam e veneram mais a suas mães de leite e  mães de santo, do que à própria genitora?

Concluindo: mesmo ateu, rezei do fundo do coração para que a infeliz madrasta Ana Carolina fosse inocentada deste triste assassinato de Isabella. Vibrei ao ver enteada e madrasta de mãos dadas, tão amiguinhas, dentro supermercado. Se for mesmo comprovada sua culpa, que a justiça se cumpra, e que sirva de lição a  todas  mães substitutas, para que aprendam a conviver com seus enteados com respeito, amor e carinho. E que a partir de hoje, quando milhões de brasileiros estão traumatizados com o fantasma de uma madrasta ter sido tão má, só chamemos de madrasta àquelas que comprovadamente forem maldosas,  passando a nomear às boas mães substitutas, de “segunda mãe”. Afinal, o que é melhor para uma criança órfã de genitora: ter uma madrasta ou uma mãe do coração?

Luiz Mott, Professor Titular de Antropologia da UFBa e Comendador da Ordem do Rio Branco <luizmott@oi.com.br>